Conversa com especialista – Transtorno do Espectro Autista (TEA).

No vasto panorama da psicologia contemporânea, o Transtorno do espectro autista (TEA)  emerge como um tema de destaque, marcando uma íntima relação entre a prática profissional e a compreensão social. Nesse contexto, profissionais qualificados desempenham um papel crucial, não apenas no diagnóstico e tratamento, mas também na disseminação de conhecimento e na promoção de uma abordagem inclusiva e empática.

Ao longo dos anos, testemunhamos uma crescente visibilidade do autismo, refletida no aumento dos diagnósticos e na conscientização da sociedade. No entanto, é importante compreender que o autismo não é um fenômeno recente, mas sim uma condição que sempre existiu, embora muitas vezes tenha passado despercebida.

No entanto, o caminho até o diagnóstico e o tratamento adequado ainda apresenta desafios. É fundamental reconhecer a diversidade de manifestações do autismo, que pode se apresentar de formas muito distintas em cada indivíduo. Nesse contexto, a Suridata enriquece as discussões sobre o tema entrevistando o psicólogo Gabriel Carvalho Nogueira (CRP 06/167536), pós-graduado em Neuropsicologia e Saúde Mental (HCFMUSP), que nos fornece insights valiosos, confira abaixo a entrevista completa!

1. Como o Transtorno do Espectro Autista (TEA) pode se manifestar em bebês e crianças pequenas?

Em bebês, é possível notar principalmente pela falta de sustentação do contato visual, não direcionar a atenção quando é chamada ou quando ouve algum barulho no ambiente, presença de movimentos repetitivos e falta de interesse em interagir com os demais (sejam adultos ou outros bebês/crianças).

As crianças menores também apresentam esses mesmos sinais, porém os fatores sociais se destacam ainda mais e são percebidos com maior facilidade: falta de comunicação (seja ela verbal ou não-verbal), interesses restritos e repetitivos (só brinca com um único brinquedo, só assiste um único desenho ou um episódio específico), não consegue interagir adequadamente com os pares de mesma idade, presença de rigidez cognitiva (só aceita determinada situação daquela forma, não aceita variações – como por exemplo o caminho até a escola, da escola para casa, possíveis mudanças na rotina), andar na pontas dos pés e também seletividade alimentar que é bastante comum, onde a criança não tolera certos tipos de alimentos, seja por cor ou textura por exemplo.

Lembrando que estes sintomas se manifestam dentro do Espectro de modo geral, mas não necessariamente a criança precisa apresentar todos eles. São indícios que nos ajudam a levantar e investigar a hipótese do TEA.

2. Como diferenciar o TEA de outros transtornos do neurodesenvolvimento, como TDAH ou deficiência intelectual?

Apesar de serem classificados como Transtornos do Neurodesenvolvimento, todos possuem suas particularidades.

O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é caracterizado por ser um Transtorno Global do Desenvolvimento, decorrente  de múltiplos fatores, mas sobretudo da presença de alterações genéticas, ou seja, o indivíduo nasce com esta condição ou não, sendo necessário observar os fatores descritos acima para verificar se aquele indivíduo preenche os critérios diagnósticos descritos pelo DSM-V (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais).

 O Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade (TDAH) também está associado a uma pré-disposição genética, onde há alterações nos genes que resultam em atrasos e/ou dificuldades nos processos atencionais, seja para direcioná-los ou mantê-los – com ou sem a presença de hiperatividade.

Já a Deficiência Intelectual (DI), também é possível observar sua pré-disposição devido a alterações genéticas, porém, diferente das demais condições acima, ela pode ser adquirida ao longo da vida. Nestes casos, a criança não necessariamente nasceu com alterações, mas irá apresentá-las em decorrência de algum fator ambiental (um trauma, abuso, lesão cerebral, infecções graves na primeira infância podem resultar na aquisição de DI).

Ressalta-se que, embora sejam diferentes, eles podem se apresentar como comorbidades em uma criança com TEA (então sim, é possível um Autista com TDAH, ou um Autista com DI ou até mesmo ambas as condições).

3. Quais são os critérios utilizados para diagnosticar o TEA?

Dentro da área da saúde, utilizam-se de dois grandes critérios (que chamamos de “obrigatórios”), sendo eles:

1 – Presença de dificuldades na interação e comunicação social: ou seja, a criança não verbaliza, não responde quando chamado, possui dificuldades em compreender linguagem não verbal, ditados e ironias, por exemplo;

2- Presença de padrões restritos e repetitivos de comportamento, interesses ou atividades: estereotipias, grande rigidez para alterações de rotina, apego excessivo à padrões objetos, planejamentos pré-estabelecidas, entre outros.

É importante ressaltar que esses sintomas trazem prejuízos significativos para o indivíduo, trazendo assim a necessidade de apoio para os mesmos (daí a decorrência das classificações do TEA: Nível 1 (exige suporte), Nível 2 (exige suporte substancial) e Nível 3 (exige suporte muito substancial).

Essa classificação varia dependendo da capacidade de autonomia daquela pessoa autista, ou seja, do quanto ela necessita de suporte para gerenciar a própria vida. Sendo assim, quanto mais autônomo, menor o nível de suporte e quanto menor autonomia, maior o nível de suporte. Essa autonomia é entendida como capacidade de executar atividades de vida diária (AVDs), gerenciar as próprias emoções, capacidade de comunicação e aos índices intelectuais – inteligência preservada, deficitária ou até mesmo acima da média também são fatores considerados nesta análise.

4. Quais instrumentos e ferramentas são utilizados para o diagnóstico do autismo?

Existem alguns instrumentos, que num primeiro momento são aplicados aos pais, cuidadores, professores ou quem quer que seja que tenha algum convívio com aquela criança. Alguns exemplos são a Entrevista de Diagnóstico de Autismo Revisada (ADI-R), Programa de observação Diagnóstica para Autismo (ADOS) e também a Escala de Responsividade Social (SRS – II).

Embora estes instrumentos sejam muito importantes para entendermos um pouco mais da suspeita, não há ferramenta melhor do que um olhar especializado – seja do pediatra, neuropediatra, psiquiatra da infância e adolescência, psicólogos e neuropsicólogos, enfim – profissionais capacitados para poder de fato fazer a identificação dos sintomas e mapear o funcionamento daquele indivíduo.

5. Qual a importância de uma avaliação multidisciplinar?

Embora seja de pouco acesso à maioria da população e, também exista um déficit importante de profissionais capacitados para o atendimento nos casos de avaliação diagnóstica, uma avaliação multidisciplinar é a grande chave para podermos ter os sintomas identificados e descritos por estes profissionais.

É importante entender que não basta identificar os sintomas – precisamos entendê-los. Por mais que os sintomas sejam iguais, que as características sejam iguais, nenhum autista é igual ao outro. Precisamos ter isso em mente: duas crianças podem ter exatamente o mesmo diagnóstico, porém, cada criança funciona de uma forma, possui suas facilidades e dificuldades. É preciso refletir: Como é o funcionamento daquele autista? O que nós, enquanto terapeutas, precisamos identificar para que possamos ter um plano de intervenção que atenda as particularidades do nosso paciente? São questões que numa equipe multidisciplinar são construídas e discutidas com todas as áreas, pensando num plano que atenda às necessidades de todos os envolvidos, mas pensando como um só para atingir um objetivo em comum: recuperar os atrasos e desenvolver as potencialidades daquele indivíduo.

6. Quais são os principais desafios no diagnóstico diferencial do autismo?

Por muito tempo, o TEA foi invisibilizado na sociedade – na Idade Média, onde encontravam formas místicas e religiosas para explicá-lo, mas também falo de 20, 25 anos atrás onde falava-se em uma renomada revista científica que vacinas poderiam causar autismo (o que foi totalmente desmentido posteriormente).

Ainda há uma carência de diagnósticos assertivos para os nossos autistas porque o autismo é um alvo em movimento, não existe (hoje) uma causa específica conhecida – dada tamanha complexidade, ele se apresenta de forma diferente em cada pessoa e muitas vezes passa despercebido (como por exemplo, normalizando uma criança que não fala e não gosta de interagir com os colegas como uma criança “tímida”).

O tempo todo busca-se, cientificamente, afunilar as informações e os dados acerca deste tema – recentemente tivemos a alteração da prevalência de 1 a cada 44 no ano de 2018 para 1 a cada 36 agora em 2020 para crianças de até 8 anos, conforme o Centro de Controle e Prevenção de Doenças (CDC).

Isso não quer dizer que há mais autistas no mundo, mas sim, que há um aumento no número de diagnósticos – o autismo se tornou pauta, há uma série de estudos e pesquisas direcionadas para a área, o acesso e a divulgação de informações através da internet permite com que os pais, professores, cuidadores possam detectar os sinais e encaminhar seus filhos para atendimento; há também maior acesso à serviços e programas que garantem não só o atendimento mas também os direitos das pessoas autistas, enfim – trouxeram à luz o que por muito tempo foi escondido. E a tendência é que esse número se afunile, pois há cada vez mais estudos científicos que buscam entender, explicar e divulgar dados de forma mais assertiva acerca este transtorno.

7. Qual a importância da intervenção precoce? E qual a melhor idade para iniciar a intervenção?

Não há uma idade específica para iniciar a intervenção: desde que aos primeiros sinais sejam detectados, a criança já está apta para levantar a hipótese diagnóstica. É claro que estes sinais são detectados com mais facilidade à medida que as interações sociais começam. Há um estudo recente desenvolvido nos estados unidos onde foi possível fornecer um diagnóstico estável – que se confirmou posteriormente – em uma criança de 1 ano e 2 meses.

Porém, ocorre algo que particularmente acho incrível nesta área: não precisamos esperar a CONFIRMAÇÃO do diagnóstico para iniciar as intervenções. Tendo alguns indícios, havendo a suspeita e hipótese diagnóstica, é possível intervir e já iniciar o tratamento com o objetivo de desenvolver o cérebro daquela criança.

Também é importante falarmos sobre as podas neurais. Iniciando por volta de 2-3 anos e ocorrendo durante toda a primeira infância e até mesmo até a adolescência, todos nós, indivíduos típicos ou atípicos, passamos pelo que a ciência chama de poda neural.

Quando nascemos (e durante toda a primeira infância) nosso cérebro é extremamente capaz de aprender – e possui uma estrutura própria para isso. Existem bilhões de neurônios inativos que podem ser utilizados para estabelecer novas conexões, construindo aprendizagens de todas as áreas do desenvolvimento: visão, audição, tato, coordenação motora, linguagem, fala, cognição, aprendizagem e várias outras – o aprendizado é muito mais fácil de se adquirir e também se consolidar nesta fase. Isso é melhor explicado através do conceito de Neuroplasticidade, que bem resumidamente se consiste na capacidade que nosso cérebro tem de adaptar, se reorganizar e promover novos aprendizados decorrentes do ambiente externo.

Porém, nem tudo que é demais é bom: esses caminhos precisam se tornar mais fortes, consistentes e também mais rápidos, “especializados” naquela determinada tarefa. Para que isso aconteça, é preciso remover as “interferências” dos demais neurônios que não estejam contribuindo para o fortalecimento e a rapidez desta via – deste modo, o nosso cérebro automaticamente remove esse excesso, afim de aprimorar essas conexões que já foram estabelecidas e que usaremos ao longo da vida – desta forma, a neuroplasticidade diminui (e muito!) com o decorrer destas podas neurais e a nossa capacidade de estabelecer novas conexões também (por esse fator que, por exemplo, é muito mais difícil aprender um novo idioma quando estamos mais velhos).

8. Qual o papel da família no desenvolvimento de uma criança autista?

Prestar o apoio, mas acima de tudo, compreender aquela criança. Entender que a família é a instituição que essa criança mais passará seu tempo durante seu desenvolvimento – ela precisa se sentir acolhida, confortável, promover um ambiente seguro que possa auxiliar esse desenvolvimento.

Se envolverem ao máximo no processo terapêutico, serem interessados, estarem dispostos a serem (em parte, claro) terapeutas também, mas sem perder o lado de ser pai, mãe, tia, avô daquela criança. Pedir orientações, dicas, informações, discutir o caso com os profissionais que atendem a criança. Tudo isso contribui para aquele objetivo em comum que destaquei anteriormente: todos trabalhando com um mesmo objetivo.

9. Fale um pouco sobre como os pais recebem esse diagnóstico. Quais são as principais estratégias para lidar com o luto e o estresse dessa fase? Como os pais podem buscar apoio emocional?

É uma discussão muito válida e fico feliz que tenha trazido essa reflexão: quem cuida dos cuidadores?

É claro que, em grande maioria, é um impacto grande para a família receber o diagnóstico. Não é necessariamente algo negativo, mas sim um desespero: não se depararam com o autismo até então, é tudo muito novo, “o que eu faço e aquela coisa toda?”. Aliado a essas incertezas, dúvidas e inseguranças, também há uma quebra de expectativa muito grande com relação ao futuro daquela criança: os pais que imaginaram um médico, um jogador de futebol sabem que talvez isso não seja mais possível – e agora? Acontece aqui um processo de luto: há uma perda.

Além dessas questões descritas acima, é um grande stress para a família ter que lidar com as particularidades que surgem ao longo dessa jornada. Aparece uma seletividade alimentar muito específica, ou de repente precisa lidar com uma crise porque virou em uma rua diferente da que estão acostumados ou teve que se desfazer de uma roupinha que a criança gostava muito, mas já não lhe serve mais.

Para tudo isso, é válido – e necessário – cuidar dessa família. Acolher e receber essa família é primordial. Poder fornecer informações para lidar com algumas situações, poder falar abertamente sobre isso, mas também é importante o incentivo para cuidar da própria saúde mental. Nos casos mais tranquilos onde a família já suspeitava, se informou e recebeu o diagnóstico de braços abertos ou até mesmo nos casos mais complicados onde não há uma aceitação ou até mesmo sentimento de culpa, é importante cuidar de si para cuidar do outro. Então, neste caso, a grande recomendação é a terapia!

10. Quais são as principais abordagens terapêuticas para o tratamento?

Considerando o Tratamento padrão Ouro, que utiliza embasamento científico e são comprovadamente eficazes, eu destaco a ciência ABA (Análise do Comportamento Aplicada), PBE (Práticas Baseadas em Evidências). Ambas caminham juntas e somam quase a totalidade dos tratamentos voltados para o tratamento TEA (mas não só, também são eficazes para DI, TDAH, TOD).

11. O que é a terapia ABA? Para quem a terapia ABA é indicada?

ABA nada mais é do que uma ciência, construída através de inúmeras pesquisas que comprovam sua eficácia. Dentro dessa ciência possuímos algumas variações que utilizam desses princípios, porém com aplicações diferentes: como o ABA Naturalista, Estruturado, Modelo Denver e outras. De modo geral, a ciência ABA tem como objetivo elaborar programas de intervenção e promover mudanças comportamentais, a fim de desenvolver potencialidades, recuperar atrasos, desenvolver autonomia e qualidade de vida de determinado indivíduo.

Podem se beneficiar desta ciência os quadros de TEA, DI, TDAH e também o Transtorno Opositivo-Desafiador (TOD) por exemplo.

12. Como podemos promover a inclusão de pessoas com autismo e outros transtornos na sociedade?

Gosto de debater essa temática trazendo uma reflexão muito simples, mas que pra mim faz todo sentido.

É recorrente nos noticiários que familiares de crianças com necessidades especiais não conseguem vaga em escolas, por exemplo. Mas por que? “Número de vagas limitado”, “Escola não é preparada para receber crianças especiais”.

E agora entra a minha reflexão: frente a essas dificuldades que já são realidade de muitas famílias, fica o questionamento: essas crianças serão agregadas ou incluídas nestas escolas?

Partindo do pressuposto de que “agregar” define-se como “reunir pessoas num só local”, acredito que já diz tudo.

Dentro da minha prática, estou em um novo espaço e não demorou mais do que duas semanas para receber o desabafo de uma mãe, relatando que separavam o filho dela dos demais alunos quando eles precisavam fazer alguma atividade importante, “para nota”, pois segundo a escola ele “atrapalhava” os demais alunos em sala e haviam muitas reclamações, de alunos e também dos pais desses alunos, que relatavam o incômodo de se ter um colega de classe com Autismo na mesma sala de aula.

É dentro deste escopo que percebo que muito se fala sobre inclusão, mas que muito pouco se pratica a inclusão. Agregar é o que essa mãe acreditava ser inclusão: colocar no mesmo local e manejar conforme necessidade. Separá-lo de atividades com os pares porque ele chorou ao não entender uma questão é justamente segregar, excluir: não considerar.

Inclusão é uma abordagem abrangente: envolve conscientização, conhecimento, informar, acolher. É preparar o ambiente para receber essa criança, dentro de todas as suas particularidades e necessidades. Capacitar os professores para lidar com situações adversas, facilitar (e permitir!) um acompanhante terapêutico (AT) que possa auxiliar essa criança de perto e promover o suporte que ela precisa. Tornar o ambiente escolar acessível para aquela criança – comunicação alternativa, adaptação de espaços, sinais visuais, recursos que promovam o aprendizado em ritmo diferente – e de formas diferentes, que fuja do modelo tradicional engessado para direcionado para pessoas típicas. Garantir que o direito daquela criança seja exercido e principalmente respeitado. Encorajar os colegas de sala à aceitação, respeito e valorização da diversidade, em suas inúmeras formas.

É mediante a implementação de tudo isso – e mais um pouco, se me permite colocar – é que começaremos, de fato, a entender e praticar a Inclusão desses indivíduos não só na escola, mas também no mercado de trabalho e principalmente na sociedade.

Para concluir esta entrevista enriquecedora, é essencial ressaltar a importância da educação, da empatia e da inclusão na construção de uma sociedade mais justa e acolhedora para pessoas com autismo e outros transtornos do neurodesenvolvimento. Ao promovermos a conscientização, o conhecimento e a implementação de práticas inclusivas em todos os aspectos da vida, estamos não apenas oferecendo oportunidades, mas também reconhecendo e valorizando a diversidade humana em sua integralidade.

Para conhecer alguns dados estatísticos, desafios e o papel fundamental da informação leia nosso artigo “Transtorno do espectro autista (TEA), estatísticas, desafios e o papel fundamental da informação”.

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